Beth Carvalho: ‘O samba é o grande protesto, a vanguarda’

Beth Carvalho acumula mais de 50 anos de carreira desfrutando de grande prestígio e popularidade. Reconhecida por resgatar e revelar inúmeros músicos e compositores, a cantora é uma figura de elevada importância para a cultura popular brasileira.

Nascida na Gamboa, criada na zona sul, mas profunda conhecedora do Rio de Janeiro e da boa música de ponta a ponta, Beth Carvalho acostumou-se desde muito jovem a percorrer das rodas de samba suburbanas às reuniões da bossa nova em Ipanema, com o intuito de garimpar o melhor da música brasileira para o seu trabalho.

“Eu comecei a tocar violão a partir da bossa nova. E daí para o samba foi um pulo. Sempre tive uma relação com o samba tradicional, com compositores da Mangueira e do Salgueiro”, revela em entrevista exclusiva por telefone ao Samba em Rede.

Beth Carvalho recorda episódios do início da carreira em entrevista ao Samba em Rede

Foi em 1971, depois de defender “Andança”, de Paulinho Tapajós, Edmundo Souto e Danilo Caymmi, num festival de música popular, que Beth Carvalho fez sua opção definitiva pelo samba e tornou-se uma das principais divulgadoras da música carioca, gravando os sucessos “1.800 Colinas”, “Saco de Feijão”, “Olho por Olho”, “Coisinha do Pai”, “Firme e Forte” e “Vou Festejar”.

Relembre o sucesso “Andança”, de Paulinho Tapajós, Edmundo Souto e Danilo Caymmi: 

Reconhecida por resgatar e revelar inúmeros músicos e compositores do samba, Beth é apaixonada pela Mangueira, escola pela qual passou a desfilar a partir de 1970. Buscou Nelson Cavaquinho para a gravação de “Folhas Secas”, em 1973, e homenageou Cartola, que depois de uma ausência ocasionada pelo “boom” da jovem guarda, teve finalmente uma carreira em disco impulsionada, entre outros fatores, pelo sucesso da gravação de Beth Carvalho para “As Rosas Não Falam”, em 1976.

Frequentadora assídua dos pagodes, entre eles o do Cacique de Ramos, a trajetória de Beth Carvalho também é marcada por lançar grandes talentos como Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Almir Guineto e o grupo Fundo de Quintal. Sobre o fato de ser conhecida como a “madrinha” do samba, declara: “Fico muito honrada com esse título porque madrinha é aquela ‘mãe com açúcar’. Eu sou aquela mãe boazinha que revelou muitas pessoas que, graças a Deus, fazem muito sucesso.”

Na entrevista, Beth ainda comenta sobre sua relação com o compositor Nelson Cavaquinho e elege Clementina de Jesus como uma figura importantíssima para a sua trajetória. Passados 71 anos de idade e 50 anos de carreira, a artista segue enxergando o samba como forma de resistência cultural e luta política: “O samba é o grande protesto, a grande vanguarda. Ele é antigo porque tem raiz, o discurso é profundo.”

Confira a entrevista completa:

Você realizou uma turnê celebrando toda sua vida  profissional, desde as premissas da sua carreira  na década de 1960 até os dias atuais. Como foi reviver o passado dessa forma, em cima do  palco?

Foi uma maravilha! Não imaginava que já estava com mais de 50 anos de carreira, mais de meio século, é muita coisa!
A recepção do público foi muito boa, além de  homenagens lindas como o musical sobre a minha vida.

Como foi selecionar, entre centenas de canções que você interpretou nos últimos 50 anos, aquelas mais representativas de sua trajetória?

Eu comecei escolhendo entre os sucessos, sei que no final tinha feito uma relação com mais de 80 composições! Mas não podia ser 80 músicas, é demais. Vai ficar faltando muita coisa, não tem jeito! (risos)

Quais músicas do repertório lhe dão prazer especial em cantar? Por quê?

Tem “Andanças”, que foi o meu primeiro grande sucesso ainda na época dos festivais; “1800 Colinas”, o primeiro grande sucesso no samba;”Coisinha do Pai” e “Pra festejar”, que marcaram o Carnaval brasileiro; “As Rosas não Falam”, do Cartola; tem muitas!

Um dos marcos de sua carreira foi uma participação no programa do Flávio Cavalcanti, em meados de 1965, com a canção  “Por quem morreu de amor”, de  Roberto Menescal, considerada do gênero  MPB. No entanto, sua carreira se consolidou  em torno do samba. Como você lida com esse  paralelo entre o samba e a MPB?

Eu comecei a tocar violão a partir da bossa nova, que é, de fato, parte do samba. Essa canção “Por quem morreu de amor” é um samba-canção. E daí para o samba foi um pulo. Sempre tive uma relação com o samba tradicional, com compositores da Mangueira e do Salgueiro.

Existe algum episódio onde você enxerga sua opção definitiva pelo gênero samba? Como aconteceu a inserção neste universo?

Definitivamente foi a Clementina de Jesus. Ela me emocionou demais quando assisti ao espetáculo “Rosa de Ouro”, dirigido pelo Hermínio Bello de Carvalho no Teatro Jovem, em 1966.

Quem eram as suas influências no início da carreira?

Tive uma grande influencia da Bossa Nova. Nomes como Menescal, Marcos Valle, Carlinhos Lyra, Tom Jobim e João Gilberto.

E a década de 1960, sua participação nos festivais, o contexto político, escolha de repertórios. Quais lembranças você tem desse período tão simbólico para a história do país?

Foi um momento político muito forte, todos os artistas eram engajados. Hoje você não vê mais isso. É uma pena, mas eu continuo engajada.
Havia uma participação muito grande dos artistas no contexto político daquele momento.

Como você enxerga o diálogo do samba com a situação política contemporânea? Os representantes atuais estão cumprindo este papel?

Alguns sim. O samba é o grande protesto, a grande vanguarda. Ele é antigo porque tem raiz, o discurso é profundo. Posso falar de Serginho Meriti, Arlindo Cruz, Luiz Carlos da Vila – já se foi, mas fazia – e Almir Guineto.

Você é sempre lembrada como uma grande divulgadora do samba, muito pelos autores que gravou e pelos intérpretes que incentivou e/ou descobriu. Você se lembra quem te chamou de madrinha pela primeira vez?

Acho que foi o grupo Fundo de Quintal.

Como você sente a responsabilidade de carregar esse título?

Fico muito honrada com esse título porque madrinha é aquela “mãe com açúcar”. Eu sou aquela mãe boazinha que revelou muitas pessoas que, graças a Deus, fazem muito sucesso. Eu fico muito feliz, mas não tem essa coisa de responsabilidade, cada um faz aquilo que quiser depois.

Sabemos que seu coração é verde e rosa e o Carnaval sempre foi um tema recorrente em sua obra. Você acha que o Carnaval dos dias atuais subverteu dos valores tradicionais? Por quê?

Hoje tudo está muito deturpado. O desfile ficou muito comercial, muito caro. Em contrapartida, surgiram os blocos de rua, o que é muito válido para a comemoração do Carnaval.

Você acha que as comunidades se mostram resistentes a essas mudanças? 

Sim, mas são muitos pressionados, infelizmente.

Dentre tantos nomes que já cruzaram o seu caminho ao longo desses anos, de quem você mais sente falta dos que já se foram? Por quê?

Nelson Cavaquinho. Eu amava ele demais: pra mim ele é o maior compositor que existe.

Como é que você conseguiu e vem conseguindo atravessar esses 50 anos de carreira fazendo o que gosta e cantando o que se quer?

A minha personalidade é assim, nunca me deixei manipular. Meu repertório é assim, sempre mandei na minha carreira.

Você consegue resumir esses mais de 50 anos em alguma frase ou palavra?

Olha, foram anos de muito mais vitórias do que fracassos, isso já é muito bom! Recebi prêmios importantes, como o Grammy, fui enredo de escola de samba, fui mãe, que é uma coisa importantíssima na minha vida, revelei muita gente. Foi ótimo!

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